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The scents that preceds

Catilina Moreira
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Textos
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October 10, 2025

Sempre que chega a primavera, eu sei. Não é simplesmente umaconstatação do calendário, ah já estamos em março, a primavera está a chegar. Não. Eu sei porque eu cheiro. Sinto o cheiro do calor. Quando saio para a rua de manhã pela primeira vez, sinto imediatamente o cheiro do calor e sei que a primavera chegou. O calor cheira a seco, mas tem também um aroma doce, talvez por incluir o perfume de alguma flor que só desabrocha quando este calor surge. O calor cheira a insetos. O ar está mais límpido e por norma não há vento nestes dias, talvez apenas uma leve brisa que arrasta estes odores lentamente.O ar está mais límpido ao ponto de permitir escutar com clareza alguns sons queno ar húmido estão abafados, sons como o chilrear de jovens passarinhos ou orápido bater de asas das abelhas e de outros insetos pioneiros da primavera. Será este o cheiro da terra seca, por oposição ao cheiro da terra molhada quando chegam as primeiras chuvas?

A primeira vez que me lembro de sentir o cheiro do calor, da primavera, a minha primeira memória desse cheiro é de um dia de escola, quando estava ainda na escola primária. Saí do carro dos meus pais, que estava parqueado quase em frente aos portões da escola, mas do outro lado da estrada. Era ainda cedo, provavelmente cerca das oito e trinta da manhã e por isso ainda estava à sombra o lugar de estacionamento, mas não me lembro de sentir frio. Lembro-me de na primeira inspiração fora do carro sentir umaroma adocicado e seco e ver do outro lado da rua os portões banhados pelo sol. Como estava soalheira essa manhã. E a memória fica aqui, não avança muito mais. Parece-me que a revejo como uma fotografia do Iphone, com apenas um segundo de movimento até cristalizar nesta imagem. Do lado de cá, estou eu, com um ângulo de visão mais baixo que atualmente, a ajeitar a minha roupa depois de sair docarro, olhando para a estrada e do outro lado o portão da escola dourado pelosol brilhante da manhã. Consigo ainda ouvir barulho vindo do recinto da escola e ver pequenos pontos em movimento no feixe de luz solar entre este lado e o portão. Pequenos insetos na agitação matutina. E este cheiro calmo e reconfortante que me envolve num abraço incitando ao otimismo do dia que vai começar.

Houve um ano em que a chegada da primavera foi ainda de madrugada. Foi algures na minha adolescência, ou primeiros anos de jovem adulto, ou ambas, já que adistinção a esta distância nem parece fazer assim tanta diferença. Sei que foi nesta altura, porque senti o cheiro a calor ainda o sol não tinha nascido e não sei se estava a chegar a casa ou a sair. E por essa altura ambas situações eram recorrentes, mas talvez mais frequente seria a saída antes do sol nascer. Talvez tenha sido no período em que estava a estudar em Lisboa na Escola Superior. No primeiro ano ia e vinha todos os dias para Lisboa de transportes públicos. Apanhava o autocarro e depois o metro. Ainda fazia uma longa caminhada desde casa até à paragem do autocarro e desde a última estação do metro até à Escola. Saía muito cedo antes da manhã começar e chegava a casa a meio ou ao final da tarde. Tinha por isso o privilégio de assistir e participar em diversos fenómenos meteorológicos diariamente. Durante o inverno saía de casa quase sempre ainda de noite e via nascer o sol durante a viagem de autocarro. Quando via, pois quase sempre fazia a viagem de autocarro a dormir. Nesse ano assisti a muitos nasceres de sol, muitos inícios de dia, passagem do escuro da noite para o brilho da manhã. Quando finalmente chegava, Lisboa já tinha acordado há muito. Havia sempre muita gente. Muita gente na estação demetro. Muita gente nas carruagens do metro, muita gente nas passadeiras das estradas. Muita gente nos carros. No metro, no meio de tanta gente, no meio daquela mistura de odores, o cheiro característico e incontornável do metro, que associo, talvez erradamente, a um cheiro elétrico, esse sobressaía sempre.O cheiro e o som dos travões do metro ao chegar as estações. Cá fora à superfície nem sempre era percetível o cheiro do calor. O rebuliço de odores era de tal ordem intenso que não permitia a um simples transeunte agarrar esse cheiro. O cheiro seco e doce do início da estação quente.

No início de 2010 tinha eu vinte e poucos anos, comecei a trabalhar em Beja e, tendo em conta a distância, a morar lá também. Beja fica numa zona mais interior, relativamente à minha terra natal que se encontra numa zona litoral. Por isso a humidade relativa do ar de Beja era bem diferente da de onde eu vinha. Talvez por isso, o impacto dos cheiros seja diferente, bem como a sua perpetuação no ar ao longo do dia ou dias. E talvez isso tudo concorra também para que existam cheiros muito característicos de diferentes lugares. Quase como assinaturas odoríficas, impossíveis de descrever fielmente pela sua transcendência, por pertencerem ao campo sensorial. E é curioso como até os cheiros das coisas mais simples e corriqueiras, com os produtos de limpeza me parecem profundamente associados à área geográfica. O sabonete de mãos da maioria dos estabelecimentos em Beja cheirava igual. Talvez tivessem o mesmo fornecedor. E eu sei que sim, por ter lá regressado. Não me apercebi enquanto lá estava, nas vezes que ia a restaurantes ou cafés e lavava as mãos. Apenas quando fui a outros restaurantes ou cafés perto da minha zona, e depois de ter estado uma temporada fora de Beja, quando lá tornei a ir é que notei. Foi incrível. Incrível como reconheci, só pelo cheiro do sabonete de mãos que sim,estava em Beja.

Há muitos cheiros que nos transportam para memórias, outros para lugares como o sabonete de mãos, mas há muitos outros que nos recordam pessoas. Por vezes são efetivamente só os perfumes comerciais que as pessoas usam, ou determinado detergente de roupa da sua roupa, mas acredito que na maioria das vezes é a mistura de todos eles com algumas notas de um odor próprio e pessoal que se transformam na assinatura olfativa de cada um.

O cheiro do calor é o cartão de apresentação da primavera.

Catilina Moreira
Escritora, sempre que possível.

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